I. O álbum que se esconde em plena vista
Lançado com pompa e polêmica em 1995, HIStory sempre foi visto como uma resposta direta às dores e escândalos vividos por Michael Jackson. Mas há quem diga que, por trás da superfície óbvia — das letras raivosas, dos videoclipes cinematográficos, da estátua monumental — o álbum carrega mensagens codificadas, recados pessoais e até premonições.
Ao contrário de outros projetos de Jackson, onde a fantasia e o escapismo eram centrais, HIStory é denso, sombrio, politizado. Ele se constrói como um diário de guerra, mas os alvos nem sempre são claros. Há personagens implícitos. Críticas veladas. E músicas que, com o tempo, revelaram mais do que se percebia em 1995.
É como se HIStory dissesse: “Se você realmente quiser entender o que aconteceu comigo, ouça isso. Mas ouça direito.”
II. “D.S.” – um tiro com nome e sobrenome

“D.S.” é uma das faixas mais incendiárias de HIStory. E Michael Jackson não faz questão nenhuma de esconder o alvo: o nome “Dom Sheldon” é só um disfarce ralo para Thomas Sneddon, o promotor que liderou as acusações de conduta irregular com menor contra ele em 1993.
Na música, a repetição constante de “Tom Sneddon is a cold man” já deixava tudo subentendido. Mas nas execuções ao vivo, dá pra ouvir, por vezes, “Thomas Sneddon” no lugar da versão cifrada — como se Michael, em certo ponto, já não fizesse mais questão de manter a metáfora.
A letra insinua laços com a CIA, questiona se o alvo seria ligado à KKK e ironiza sua falta de vida social:
“You think he brother with the KKK? / I bet his mother never taught him right anyway.”
“Did he say to either do it or die?”
A faixa inteira é construída com sarcasmo ácido e paranoia justificada, embalados por guitarras de Slash e backing vocals carregados. Sneddon, conservador e obstinado em perseguir Jackson, acaba retratado como o símbolo do sistema judicial branco e corrompido — aquele que, segundo o artista, não se importa com justiça, mas com show.
“D.S.” não é só provocação: é um ataque direto, com nome, endereço e trilha sonora.
III. “They Don’t Care About Us” e a censura seletiva
Se “D.S.” era um míssil com destino certo, “They Don’t Care About Us” foi um grito coletivo — mas também foi alvo de censura.
Lançada como o quarto single de HIStory, a música é um protesto direto contra a brutalidade policial, o preconceito racial e a apatia institucional. Um dia antes do lançamento do álbum, o jornal The New York Times acusou Michael Jackson de usar termos antissemitas nos versos “Jew me, sue me” e “Kick me, kike me”. A reação foi imediata.
Jackson defendeu-se com firmeza, explicando que não estava atacando ninguém, mas sim sendo a voz dos oprimidos e denunciando como o sistema marginaliza as minorias. Mesmo assim, decidiu alterar os versos nas prensagens seguintes do álbum, substituindo as palavras mais controversas por efeitos sonoros, em uma tentativa de apaziguar os críticos sem abrir mão da mensagem original.

Quando lançaram seus curtas, emissoras como MTV e VH1 limitaram severamente a exibição. Das duas versões dirigidas por Spike Lee, a que mostrava imagens de prisões, conflitos e abusos de direitos humanos foi praticamente banida das programações (Prison Version). A versão brasileira — gravada no Pelourinho, em Salvador, e na favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, com a participação do Olodum — teve mais visibilidade, mas ainda enfrentou resistência.
O paradoxo foi cruel: a música que denunciava a indiferença das autoridades sofreu, na prática, o mesmo tipo de silenciamento que criticava. Ainda assim, Jackson não recuou. Manteve “They Don’t Care About Us” nos shows da HIStory World Tour, promoveu remixes, e insistiu na mensagem: ninguém está acima da crítica quando o assunto é injustiça.
IV. “Stranger in Moscow”, o lamento isolado
Enquanto outras faixas de HIStory são marcadas por fúria ou enfrentamento, “Stranger in Moscow” é o oposto: é solidão em forma de som.

Composta durante a estadia de Michael Jackson na Rússia, em 1993, a música nasceu em um quarto de hotel — num momento em que o artista estava emocionalmente devastado pela exposição pública e pelas acusações que enfrentava. O frio russo se tornou metáfora perfeita para o gelo emocional que o cercava.
A letra é introspectiva, quase sussurrada, e pergunta:
“How does it feel when you’re alone and you’re cold inside?”
Ali, não há máscara, não há dança, não há escudo. Só vulnerabilidade.
A produção também se destaca: minimalista, quase hipnótica, com sons ambientais e vocais em camadas que criam a sensação de alguém caminhando sob a chuva — literalmente. É o oposto da grandiosidade épica de outras faixas do álbum, e por isso mesmo, é uma das mais impactantes.
Se “D.S.” é a voz que grita e “They Don’t Care About Us” é a que protesta, “Stranger in Moscow” é a que chora em silêncio.
No clipe, isso se traduz visualmente em personagens distintos, todos vivendo sua própria versão de abandono. Ao final, todos são atingidos pela chuva — que simboliza o peso da incompreensão universal.
V. “Earth Song” — o clamor da Terra
Entre as faixas inéditas de HIStory, “Earth Song” é a mais épica. Com estrutura de oratório, coral gospel e uma crescente dramática que beira o apocalíptico, a canção é um clamor universal pela vida no planeta — humano, animal e natural.
Michael Jackson começou a escrever “Earth Song” ainda no final dos anos 80, mas foi em HIStory que ela encontrou seu lugar. Diferente das faixas que lidam com ataques pessoais, essa trata da destruição coletiva: guerras, poluição, desmatamento, exploração de animais e miséria humana. Tudo em uma linguagem simbólica, mas absolutamente direta.
A letra não acusa uma pessoa. Ela questiona a humanidade como um todo:
“What about sunrise? What about rain?”
E depois, quase como um ato egoísta, o coro:
“What about us?”

A performance ao vivo, especialmente no BRIT Awards de 1996, causou polêmica: Jackson apareceu como uma espécie de messias, cercado por crianças e efeitos visuais que remetiam à redenção. A recepção da mídia britânica foi majoritariamente negativa — acusaram o cantor de messianismo. Mas, paradoxalmente, essa era a intenção: colocar o artista em sacrifício pelo planeta, como símbolo e não como salvador.
“Earth Song” se tornou o maior sucesso de Michael Jackson no Reino Unido, passando seis semanas no topo das paradas. A mensagem da canção, infelizmente, só se tornou mais urgente com o passar dos anos.
Com ela, Jackson fechava o álbum não com resposta, mas com pergunta. Uma súplica que ecoa até hoje — talvez a mais importante de toda sua carreira.
VI. “You Are Not Alone” — consolo, #1 e polêmica musical

Como segundo single de HIStory, “You Are Not Alone” marcou história por estrear direto no topo da Billboard Hot 100 em agosto de 1995, um feito inédito até então.
Escrita por R. Kelly, a canção se tornou símbolo de reconforto emocional. Michael Jackson participou da produção e a entregou com sua voz mais sensível, como um abraço em forma de melodia. O videoclipe, dirigido por Wayne Isham, traz momentos íntimos com Lisa Marie Presley, em cenas que evitam danças para valorizar a conexão emocional.
Em 2007, veio à tona a polêmica musical: dois irmãos belgas, Eddy e Danny Van Passel, alegaram que R. Kelly teria plagiado sua composição “If We Can Start All Over” para criar You Are Not Alone. Um tribunal europeu reconheceu semelhanças e proibiu a música de ser tocada no país, mas Jackson não foi implicado.
E teve um brasileiro que destacou a força da faixa: Renato Russo, em bloco editado do “Renato Russo de A a Z”, afirmou sobre a música:
“A coisa que eu mais invejo é você fazer ‘You Are Not Alone’, do Michael Jackson. É muito difícil… existe uma maneira de você usar a emoção com inteligência e sensibilidade.”
A frase do ícone da Legião Urbana é emblemática: trata-se de um elogio tanto à simplicidade consciente da composição quanto à capacidade de Jackson de emocionar pelo minimalismo.
VII. “Smile” — a ironia final
Encerrando HIStory está uma escolha que, à primeira vista, parece destoar de todo o álbum: “Smile”, de Charles Chaplin, imortalizada por Nat King Cole. A música fala em sorrir mesmo quando o coração estiver em prantos — quase um conselho impossível de seguir após o turbilhão emocional que HIStory entrega.
Mas a escolha não é inocente. Para Michael Jackson, Chaplin era um dos maiores artistas de todos os tempos — não apenas pela arte cômica, mas pela crítica social camuflada na doçura de suas obras. Assim como Chaplin, Michael usava a própria imagem para atingir um ponto de ruptura: o artista como espelho do mundo.

Gravada com orquestra e produção refinada, a interpretação de Jackson é contida, quase vulnerável. Não há o virtuosismo vocal de outras faixas. Há melancolia. Há dor. Mas também há dignidade.
“Smile” seria lançado oficialmente como single em dezembro de 1997, com capa já impressa e clipe em pré-produção — mas foi cancelado de última hora. As razões nunca foram esclarecidas. Diz-se que a gravadora não acreditava mais no desempenho comercial da faixa; outros falam em conflitos internos na gestão da carreira de Jackson. O fato é que o lançamento nunca aconteceu, tornando “Smile” um encerramento ainda mais simbólico: o adeus que nunca veio.
Encerrar um álbum tão carregado com essa faixa é quase cruel — mas também genial. Depois de tanto gritar, acusar, se defender e expor, Jackson simplesmente pede um sorriso. Não como fuga. Mas como sobrevivência.
VIII. O Legado Invisível
HIStory é um álbum de códigos, feridas e monumentos — literalmente. Mas, para além da superfície, ele é um espelho de um artista em frangalhos que se recusou a desabar em silêncio. Em vez disso, gritou. Reagiu. E, acima de tudo, transformou a dor em linguagem universal.
Mesmo entre fãs, a compreensão total do disco levou anos. A cada nova escuta, HIStory revela mais: um efeito reverso de uma obra feita para durar, não para agradar. Foi o primeiro grande projeto em que Jackson deixou a fantasia de lado e colocou sua identidade à frente de tudo — negro, acusado, artista, humano.
No fundo, HIStory não buscava reconciliação com a mídia ou com os críticos. Buscava com o próprio Michael. O que ele sentia. O que precisava dizer. E o que não podia mais esconder. Foi um álbum feito para si, com a esperança de que alguém, em algum lugar, entendesse.
E a resposta veio, mas não em jornais. Veio nos palcos.