Era para ser apenas mais um Carnaval na Bahia, onde o Olodum, com sua força rítmica e mensagem antirracista, dominaria as ladeiras do Pelourinho. Mas tudo mudou com um telefonema inesperado de Ana Meire, diretamente de Nova York. Spike Lee, o diretor mais provocador do cinema negro americano, queria falar com o Olodum. Ele vinha ao Brasil acompanhado de ninguém menos que Michael Jackson, o maior astro da música mundial, para gravar o clipe de “They Don’t Care About Us.
Salvador, a capital da negritude brasileira, estava prestes a se tornar palco de um momento histórico.
A chegada de Michael evocava memórias de gerações que cresceram nos anos 60 e 80, fascinadas pelos Jackson Five. Aqueles garotos negros de cabelos “black power” eram símbolos de orgulho e beleza em um mundo racista. Agora, Michael, em sua fase mais polêmica e transformada, surgia na Bahia — a cidade que carrega no DNA a resistência e o orgulho da ancestralidade africana. Ele vinha acompanhado de Spike Lee, uma figura que exalava contundência e coragem. Juntos, eles encontraram no Olodum um parceiro à altura, um símbolo de luta contra o racismo e pela dignidade negra.
O encontro foi carregado de ironias e contrastes. Michael Jackson, com sua trajetória controversa de desconstrução da própria identidade racial, parecia distante das discussões que Spike Lee tanto provocava em suas obras. Enquanto Spike era acusado de racismo inverso, o Olodum enfrentava críticas dos dois lados: brancos que o viam como radical e negros que julgavam sua abertura no Carnaval. Mas, na essência, todos carregavam uma missão comum: subverter as dinâmicas de poder e elevar a autoestima negra em um mundo estruturado pelo racismo.
A gravação no Largo do Pelourinho foi um espetáculo à parte. Duzentos percussionistas do Olodum, com suas cores vibrantes e batidas ancestrais, se uniram ao rei do pop e ao cineasta icônico para criar algo mais que um clipe — um manifesto.
Ali, no coração da Bahia, três forças culturais mostraram que a arte não é apenas entretenimento; é ferramenta de transformação, resistência e afirmação.
O impacto desse encontro reverberou muito além das ladeiras de Salvador. A união de Michael Jackson, Spike Lee e o Olodum simbolizou a confluência de três continentes: a América de Spike e Michael, a África ancestral pulsante no Olodum e a Bahia como ponte entre eles. Foi um lembrete de que, mesmo com diferenças, a arte negra compartilha um objetivo comum: resgatar a dignidade roubada pela história e abrir caminhos para um futuro mais igualitário.
Esse encontro mítico não foi obra do acaso. Foi o destino, a força dos orixás, unindo três potências que carregam o legado de Malcom X, Martin Luther King e Zumbi dos Palmares. E, naquele Carnaval, Salvador se tornou o epicentro de uma revolução cultural que continua ecoando em cada batida do tambor do Olodum e em cada verso de “They Don’t Care About Us”.