Por Andréa Luisa Bucchile Faggion;
Originalmente publicado na coluna “Amém”, Edcyhis (Junho de 2004);
Republicação adaptada pela MJ Beats.
Era uma vez, uma época e um lugar em que aqueles com o poder de decidir sobre vida e morte, liberdade e privação, também se julgavam no direito de determinar como viveríamos nossas vidas — até mesmo dentro de nossas casas, com as cortinas cerradas.
Pequenas cabeças adornadas com coroas se proclamavam enviados de Deus, com linha direta com Ele para esclarecer eventuais dúvidas — naturalmente.
Contavam que a palavra Dele, com tudo que podemos ou não fazer neste mundo, havia sido ditada a uns poucos escolhidos, que então a encerraram em um livro Eterno e Sagrado.
Este livro só poderia ser devidamente compreendido por outros poucos — novamente inspirados por Ele.
Mas esses “poucos” também estavam, claro, a serviço daqueles com coroas — um pequeno detalhe convenientemente omitido…
Para “nos proteger” de perder a alma, esses senhores zelosos proibiam a leitura de qualquer obra que pudesse desafiar sua versão da verdade.
Era proibido compreender por si mesmo — ou, pior ainda, duvidar que aquelas fossem mesmo palavras divinas, e não meras palavras humanas, demasiado humanas.
Quando a ameaça à ordem era grande demais, preferiam lançar os “hereges” em fogueiras terrenas.
Para os “sortudos”, restava o banimento social — acompanhado de um eficaz aparato de propaganda que fazia o povo odiar quem ousasse questionar.
E se um povo inteiro recusasse a submissão?
Ora, sempre havia um meio — por bem ou por mal — de “levar a graça” até eles.
Afinal, submeter-se à palavra Dele era, coincidentemente, submeter-se a eles.
Outro pequeno detalhe…
Mas então, naquela época, muitos começaram a perceber que o fogo humano não assustava tanto, e que talvez reinar no inferno não fosse tão ruim quanto servir no paraíso imposto por outros.
Esses homens “perigosos” possuíam talentos diversos.
Havia pintores que também estudavam medicina e criavam maravilhas arquitetônicas.
Não aceitavam palavras humanas como verdades eternas — buscavam inspiração nos pensadores que vieram antes, em tempos anteriores até à palavra escrita.
Eram os Renascentistas.
Assim, pouco a pouco, as coroas precisaram abdicar do controle sobre a palavra — quando não do próprio trono.
Cada pessoa conquistou o direito de escolher o que acreditar.
Por um tempo…
Mas um dia, homens sem coroas — pois o poder já não vinha mais do ornamento — voltaram a se declarar enviados e defensores da verdade.
Mais uma vez, quiseram nos dizer o que é certo ou errado — até sobre o que fazemos entre quatro paredes.
Agora, os hereges não são mais “possuídos pelo demônio”.
Os “leitores modernos” do livro eterno se atualizaram: somos apenas doentes mentais.
Nosso bem-estar, dizem, agora também inclui a obrigação de nos proteger contra nós mesmos.
Se for preciso nos destruir para isso… que assim seja.
E então, em um tempo e lugar muito próximos, um homem ousou acreditar que a palavra de Deus não precisa passar por eles.
Inspirado nos Renascentistas, ele enfrenta novamente o fogo — inventado pelos que, em todas as épocas, se proclamam donos da verdade.
E essa é a lenda dos Renascentistas:
Sempre queimando no fogo demasiado humano daqueles que se acham portadores da centelha divina.
E serão felizes esses heróis?
Ah… esta não é uma história sobre felicidade.
“Em todo desejo de conhecimento existe mesmo uma gota de crueldade.”
— Nietzsche
[*] Este texto foi adaptado para refletir os valores e diretrizes atuais, com o objetivo de preservar sua relevância e respeito ao público contemporâneo.