Michael Jackson em foto com máscara cirúrgica

Coisas de Família

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Por Andréa Luisa Bucchile Faggion;
Originalmente publicado na coluna “Amém”, Edcyhis (Agosto de 2004);
Republicação adaptada pela MJ Beats.


“Minha família e eu temos dedicado nossas vidas a espalhar união e paz pelo mundo através de nossa música.”


O processo de “coisificação” de Michael Jackson deve ter começado pouco depois de ele ter deixado as fraldas — quando começaram a perceber que aquele garotinho tinha algo de especial.

Prontamente, esse algo de especial começou a apartá-lo de sua humanidade aos olhos de quem o via.

Muitos sequer conseguiam vê-lo como um simples menino e se referiam a ele como “o anão do Jackson 5”.

Os executivos de gravadoras — que até hoje se digladiam na justiça pelos direitos sobre o pequeno Michael — quando o olharam pela primeira vez, certamente viram, antes de mais nada, uma mina de ouro.


“É uma pena que, por anos, nós tenhamos sido o alvo de retratações completamente equivocadas.”


Na adolescência, Michael chegou a um novo estágio de seu ser coisa.

Agora, ele não era mais a coisinha engraçadinha que encantava a todos (e enriquecia alguns).

Ele era uma coisa que viam e odiavam por ter tomado o lugar da coisinha fofa.

Como ele não era uma pessoa, ninguém se importava em dizer a ele:

“Este é o pequeno Michael Jackson? Já era!”

Ou então lhe jogavam uma simples interrogação:

“Onde está Michael?”

Como quem diz: “Cadê aquela outra coisa a que estávamos acostumados?”


“Nós assistimos como somos humilhados e vilipendiados.”


Para o bem ou para o mal, em vez de aproveitar o fracasso que se oferecia a ele como a única chance de salvar sua humanidade aos olhos do mundo, Michael partiu para um terceiro — e ainda mais feroz — estágio de seu desenvolvimento como coisa.


“Eu, pessoalmente, tenho sofrido com mentiras dolorosas e referências a mim como ‘Wacko Jacko’, assim como com a última mentira sobre eu me tornar pai de quadrigêmeos.”


No palco e nos estúdios, ele foi além do que qualquer ser humano poderia sonhar.

E assim, quem poderia olhar para ele como um simples humano?

Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, este novo Michael Jackson:

“o divino, nasceu da barriga de um meteoro ou da pura luz ou das entranhas do Fatum.”

E foi ao se tornar um deus — e deixar de ser gente — que Michael se tornou imediatamente e irremediavelmente uma coisa.


“Isto é intolerável e tem que parar.”


Começaram a especular sobre seus hábitos, que não podiam ser imaginados como os de uma pessoa comum.

Seu próprio staff entrou na onda dos tablóides e vendeu a imagem de “Michael Jackson: o excêntrico” — aquele que não é um de nós, aquele que está apartado do resto da humanidade.


“A representação pública de nós não é o que nós somos: nós somos uma família amorosa.”


Sua transformação física, por mais de uma década inexplicada, passou a ser o fator mais estudado.

Porque este homem — que não era mais homem — não mais seria compreendido, mas sim analisado.

Seu nariz deve ter sido objeto de estudos mais minuciosos do que qualquer cratera da Lua.

Seu rosto — se é que se pode chamar de rosto o que se percebe como a face de uma coisa — passou a ser mapeado como um acidente geográfico qualquer.


“Meu sucesso no palco pode ser atribuído ao amor e ao apoio da minha família fora do palco.”


Neste quarto, último e mais violento dos estágios, os hábitos reprodutivos, amorosos e familiares de Michael Jackson passaram a ser pesquisados como os de uma besta enjaulada e exposta à curiosidade pública.

Como se faz com qualquer besta, rapidamente se descartou a hipótese de que houvesse mesmo hábitos dos dois últimos tipos.


“Meus irmãos e eu somos ‘irmãos’ antes de mais nada.”


Lembrando que a besta-coisa devia, antes de mais nada, entreter o respeitável público, casas de apostas chegaram a abrir jogos sobre seu comportamento e seu destino:

“Michael Jackson será condenado por abuso sexual? Paga-se dois por um. Será inocentado? Paga-se três por um. Ele irá se suicidar antes do término do processo? Paga-se quatro por um.”

E, claro, a aposta mais sarcástica:

“Ele voltará a seu planeta de origem? Paga-se cinco por um…”


“Nós começamos juntos e nós sempre estaremos juntos.”


A besta-coisa se tornou então besta-fera — e fera ferida.

Se cobre em público, seja de maquiagem ou com a máscara — aquela máscara que mais parece um grito velado de socorro.

Cobre a câmera que investiga seus traços, como o animal acuado que se esconde do predador.

Mas acima de tudo, ele se cerca de sua família — no seio da qual busca proteção e amparo, voltando a ser simplesmente um homem.


“Tudo que eu posso esperar é que, um dia, minha família receberá a mesma cordialidade e respeito que nós, durante toda nossa vida, demonstramos aos outros…”


[*] Este texto foi adaptado para refletir os valores e diretrizes atuais, com o objetivo de preservar sua relevância e respeito ao público contemporâneo.


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