Ilustração de Michael Jackson num campo de guerra (IA)

Basta!

Por Andréa Luisa Bucchile Faggion;
Originalmente publicado na coluna “Amém”, Edcyhis (Outubro de 2004);
Republicação adaptada pela MJ Beats.


Meus amigos, vamos celebrar!

We’ve Had Enough, a maravilhosa We’ve Had Enough, não é apenas mais um desabafo sobre o linchamento que Michael Jackson vem sofrendo nas mãos dos neoconservadores, falsos moralistas e fundamentalistas que detêm o poder na América.

Embora a mensagem seja universal, no contexto atual ela é, sim, um desabafo sobre o que o mundo inteiro vem sofrendo nas mãos desses republicanos de Bush, que tratam “gente esquisita” com algemas e bombas.


Mas, como estamos falando de Michael Jackson, não espere a banalidade de versos como “queremos paz” ou “a América mente”.

A canção mais política da carreira de Michael — sim, mais do que They Don’t Care About Us — não carrega bandeiras explícitas ou bordões anti-Bush.

Michael é o contador de histórias do mundo contemporâneo.

Como os sábios de séculos (ou milênios) atrás, ele faz sua crítica com parábolas e narrativas.

Foi assim quando ele dançou seus sonhos em forma de livro, por exemplo.


Em We’ve Had Enough, ele nos leva a imaginar como um pai contaria a uma criança sobre a morte da mãe em um ataque militar — e vice-versa.

Há algo mais simples e direto do que esse apelo?

Há alguma ideologia que se sobreponha à constatação crua de uma vida interrompida?


Como me disse em conversa nosso ex-diretor e amigo Alvaro Zanotti, estes versos — que retratam inocentes pedindo explicações sobre a orfandade provocada pela guerra — soariam piegas na boca de qualquer outro artista.

Com Michael, eles soam dolorosamente humanos, fazendo-nos pensar — ou melhor, sentir — como pudemos permitir que isso acontecesse.


Esta é uma das funções de Michael Jackson no mundo:

Ele nos faz enxergar o que há de mais simples e que, de tão óbvio, não percebemos mais.

Ele nos mostra que teorias complicadas e sofisticações intelectuais nada valem diante da dor nua e humana.


Nos fazer imaginar uma garotinha perguntando a um oficial se Deus lhe disse que ele poderia decidir quem vive e quem morre — este é o jeito de Michael de nos ensinar que nenhuma ideia vale uma vida.

É o olhar de um homem simples, que vê a vida sem as lentes das convenções, ideologias, fórmulas e regras.

Aliás, será que um dia vão entender que é só isso que ele quer dizer quando afirma que temos a aprender com as crianças?


Dizem os estetas que toda arte é crítica — mesmo em um conto de fadas como Chapeuzinho Vermelho — porque a arte é, no mínimo, a criação de uma utopia: um mundo que ainda não existe no real.

Assim, mesmo o artista mais apolítico, ao criar um universo próprio, questiona (ainda que involuntariamente) o mundo em que vivemos.


Mas em We’ve Had Enough, Michael sabia exatamente o que estava fazendo.

Desta vez, ele não criou uma utopia.

O que faz dessa canção sua obra mais política é justamente a identificação entre o conto e a realidade — no contexto atual.


A música fala, sem se referir diretamente, de uma realidade que não é apenas de guerra, mas também de possibilidade de mudança.

Michael grita que temos escolha.


Sim, os americanos puderam escolher entre o “senhor da guerra que não gosta de crianças” e o mal menor, o “falso caçador de gansos” John Kerry.

Infelizmente, muitos ainda acharam que não tinham tido o bastante.


Mas esta foi a ousadia política de Michael Jackson:

Atacar a guerra não pelas mentiras de Bush ou pelos prejuízos aos cofres públicos, mas por negar o direito que os “pacificadores do mundo” se deram de matar em nome da paz.


Sua ousadia artística?

Mais uma vez, na estrutura da canção: quase 6 minutos sem um refrão propriamente dito!

Que rádio vai executá-la?


Bom seria se fossem todas!

Bom seria se ela tivesse ecoado em toda cabine de votação da América!


Aliás, essa canção me lembra um novo documentário que seria lançado quase simultaneamente ao box set no Reino Unido.

O documentário — com a participação da obsessiva Carole Lieberman e do falso detetive Ernie Rizzo — defendia que não podemos entender Michael Jackson, pois sua noção de realidade seria “demasiado distante” da nossa.

Ora… antes nossa realidade fosse mais próxima da dele, não é?

Ao menos em sua fantasiosa Neverland, ao contrário do nosso real Iraque, as crianças estão a salvo — até que se prove o contrário…


[*] Este texto foi adaptado para refletir os valores e diretrizes atuais, com o objetivo de preservar sua relevância e respeito ao público contemporâneo.