De “Wacko Jacko” a “molestador de crianças”, o Rei do Pop tem sido o alvo preferido da mídia desde meados dos anos 1980. Agora é a hora certa para reavaliar sua vida e seu legado
“Será que dá para ficar mais bizarro do que tem sido ultimamente?” — perguntava Maureen Orth nas linhas iniciais de um artigo de 2003 da Vanity Fair, cujos ataques absurdos ao Michael Jackson incluíam acusá-lo de usar vudu para derrotar seus inimigos e de ter uma prótese no lugar do nariz.
Jackson, é claro, nunca usou vudu contra os inimigos, nem tinha um nariz falso (essa última afirmação sendo um boato que foi desmentido de vez pelo relatório de sua autópsia). No entanto, naquela altura, ele já vinha sendo vítima de bullying incansável pela mídia por quase vinte anos.
Mas como é que Orth conseguiu fazer alegações tão grotescas em uma publicação de grande escala e se safar disso? Quais foram as circunstâncias que permitiram que uma jornalista atacasse agressivamente a integridade de Jackson, em certo momento o homem mais famoso do mundo, sem prova alguma, e ainda assim ser considerada confiável?
O nascimento da imagem de “Michael Jackson, o molestador de crianças”
Os golpes à imagem pública do Michael Jackson começaram muitos anos antes da publicação do artigo de Orth. Já na década de 1970, um jovem Jackson se viu forçado a responder aos intermináveis boatos sobre sua vida afetiva. Jornalistas queriam saber quem/se ele namorava, especulavam se ele era gay e até mesmo se ele tinha passado por uma mudança de sexo.
Conforme os anos passaram, a devassa de sua vida particular só piorou. Em meados dos anos 1980, o foco mudou da sua vida afetiva para suas supostas “excentricidades”; foi nesse período que os tabloides criaram o termo “Wacko Jacko”, que perseguiria Jackson para o resto de sua vida, e que o cantor odiava.
De meados dos anos 1980 em diante, as histórias ficaram completamente fora de controle: ele dormia numa câmara de oxigênio, ele tinha comprado os ossos do Homem Elefante, ele tinha “embranquecido” a pele. Todas eram mentiras escancaradas, que, no entanto, encontraram um nicho crescente de consumidores no público ávido por escândalos.
Acontece que Jackson era uma figura complexa, um homem que estava, em muitos sentidos, à frente de seu tempo. Sua visão e seus talentos como compositor, cantor e dançarino se tornaram a referência para as próximas gerações; seu uso de sua plataforma para promover mudanças sociais o tornaram um dos maiores humanitários do mundo.
No entanto, por mais grandioso que ele aparentasse ser às vezes, ele era apenas um homem — um homem que cresceu em circunstâncias únicas, que sonhava com viver uma vida normal e que não se esquivava de falar publicamente sobre suas dificuldades e seus desafios pessoais. Ele não devia nada a ninguém, e, ainda assim, falava.
Seus críticos não se importavam. Eles estavam mais investidos no personagem bizarro criado pela mídia; eles queriam respostas, mas não as respostas que Jackson os tinha dado: que ele nunca teve uma infância, que a mudança na cor de sua pele era produto de uma doença incurável. Era como se estivessem surdos.
Em 1993, as histórias falaciosas tinham aumentado tanto que ameaçavam ofuscar o trabalho de Jackson. Por isso, ele e sua equipe, percebendo como a mídia tinha tido sucesso em desumanizá-lo, deram início a uma ofensiva de Relações Públicas que incluiu uma entrevista à apresentadora de TV Oprah Winfrey, onde ele falou pela primeira vez sobre vários assuntos, incluindo seu vitiligo.
O esforço, alguns dizem, veio tarde demais. Meses depois, quando saiu nas notícias que Jackson estava sendo acusado de molestar um menino de 13 anos, Jordan Chandler, poucos na mídia questionaram as alegações. Para muitos, era como se as peças finalmente tivessem se encaixado sobre as dúvidas que tinham sobre as “excentricidades” do cantor.
Foi assim que nasceu a imagem de “Michael Jackson, o molestador de crianças”. Não importava que o pai do menino, um vigarista cujo consultório odontológico era famoso por receitas médicas “encomendadas”, foi gravado dizendo que arruinaria a vida de Jackson se não conseguisse o que queria, ou que os Chandler, que nunca denunciaram o cantor à polícia, pegaram o dinheiro do acordo legal e sumiram.
O que importava era que Jackson era diferente, e, por isso, merecia ser punido.
Em 2003 surgem novas alegações, desta vez dos Arvizo, uma família de golpistas que já havia tentado trapacear celebridades como Chris Tucker e Jay Leno. Eles acusaram o cantor de molestar o menino Gavin Arvizo enquanto Jackson estava sendo investigado pelas forças policiais, após o lançamento do documentário Living with Michael Jackson. A investigação incluiu uma busca e apreensão em Neverland que não encontrou nenhum indício de crime.
Jackson, que então passava por um dos piores períodos de sua vida, foi julgado inocente de todas as acusações em 2005. Mas a mídia, cujo comportamento ultrapassou todos os limites éticos, perseguiu o cantor ao ponto de que o veredito a seu favor, obtido em um tribunal de justiça, pareceu duvidoso para uma grande parte do público.
As evidências de intenção maliciosa, tanto no caso de 1993 quanto no de 2003, eram vastas e estavam ao alcance de todos — então, o que convenceu grande parte da sociedade que Jackson era culpado? Que mecanismo operou contra ele, fazendo com que até mesmo pessoas informadas acreditassem nas alegações, apesar de seu bom-senso?
Repetição e familiaridade
Em um artigo da BBC de 2016, o psicólogo Tom Stafford falou sobre o efeito da “ilusão da verdade”, um mecanismo resumido por uma citação atribuída ao Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels: “repita uma mentira com suficiente frequência e ela se torna verdade.” Stafford explica o efeito por meio de um experimento psicológico comum, em que se é pedido a um grupo de pessoas que classifiquem a veracidade de alguns fatos.
Após uma pausa, é pedido que repitam o procedimento, mas com uma mistura de fatos já vistos e fatos novos. A principal conclusão é que as pessoas tendem a classificar fatos que já viram antes como “mais propensos a serem verdadeiros, independentemente de serem verdadeiros ou não, e aparentemente pelo único motivo de serem mais familiares.”
Será que o mesmo poderia estar ocorrendo com a percepção do público sobre Michael Jackson?
Tudo indica que sim. Onde faltam provas, a repetição de histórias distorcidas ou mesmo inteiramente inventadas é o mecanismo usado pela mídia e por golpistas para caracterizar Jackson como um monstro, um homem tão desprovido de qualidades humanas que o abuso sexual infantil parece não apenas crível, mas plausível. Repita as alegações com suficiente frequência e elas começam a parecer familiares.
As razões pelas quais a mídia e os acusadores escolheram explorar essas narrativas sobre o cantor vão além do propósito desse texto. No entanto, se olharmos de perto como Jackson vem sendo caracterizado nos últimos trinta anos, perceberemos que o sistema se repete: cada história falsa é como uma camada que se apoia em mentiras anteriores, enquanto simultaneamente lança as bases para futuras farsas, criando uma falsa sensação de certeza de culpa.
Em outras palavras, a imagem pública de Michael Jackson já foi tão golpeada que, a essa altura, qualquer mentira cola. É por isso que não foi nenhuma surpresa quando as alegações feitas por Wade Robson e James Safechuck contra o cantor no documentário Leaving Neverland, de 2019, foram tão rapidamente aceitas por parte da sociedade, apesar do histórico duvidoso da dupla e das inconsistências gritantes em suas histórias.
O que o futuro reserva para a imagem pública de Jackson
Pode ser que Robson e Safechuck de fato se tornem famosos dentre os acusadores de Jackson, mas não pelas razões que previram — e sim porque foram os primeiros a ter suas contradições expostas nas mídias sociais em tempo real, um desafio que os acusadores anteriores não enfrentaram e que pode dar início ao muito aguardado processo de reavaliação da vida e do legado do cantor na arena pública.
Alguns podem dizer que isso não é o suficiente para limpar a reputação de Jackson, e que o desmascaramento da mais recente tentativa de lucrar em cima de seu nome apenas arranha a superfície da credibilidade dos acusadores — e pode ser que estejam certos. Reconstruir a imagem pública de Jackson não é tarefa fácil, e a certeza de culpa está enraizada na mente de uma parte significativa da sociedade.
Mas a batalha não está perdida. Analisando o efeito da “ilusão da verdade”, Stafford conclui que a repetição e a familiaridade não são os únicos aspectos que influenciam nossas crenças — “quando armados de conhecimento”, diz o psicólogo, “nós podemos resistir.” Portanto, é através do poder do raciocínio que podemos contrabalançar nosso instinto de usar atalhos para formar opiniões.
A era das mídias sociais, onde a informação está disponível em primeira mão e a percepção pública pode mudar da noite para o dia, é o ambiente perfeito para o questionamento de velhas narrativas e a revelação da verdade dos fatos. Nesse sentido, entender o mecanismo que permite que a reputação de Michael Jackson seja continuamente manchada é o primeiro passo para que se traga justiça ao cantor.
O segundo passo é humanizá-lo, fornecendo informações precisas e contextualizadas, que quando contrastadas com os rumores mal-intencionados e sem fundamento que cercam Jackson, deverão ser o suficiente para expor as histórias pelo que realmente são: apenas histórias, e não a verdade. Apesar de não podermos voltar atrás o tempo e desfazer o mal já feito, podemos mudar essa narrativa.
por Manu Bezamat