Michael Jackson: o homem no espelho e nós

Michael Jackson foi um gênio musical, muitos correram a reconhecer a obviedade quando ele partiu. Mais embaraçoso foi, é e será reconhecer que grande parte da genialidade brotava justamente do sofrimento brutal que ele vivenciou (quase) publicamente desde que era o garotinho-prodígio do grupo Jackson 5, dirigido e tiranizado por um pai violento e abusivo (e pela indústria musical que sustentava o “fenômeno”).

Aos 8 anos ele começou a se tornar a atração principal entre os Jackson 5, e aos 13 iniciou uma carreira solo paralela à trajetória de sucesso do grupo. No primeiro disco individual,Got to Be There (1972), havia uma canção infantil chamada “Rockin’ Robin”, cujo protagonista era um melro roqueiro às voltas com outros pássaros, entre eles um “grande corvo preto”. O melro tomava aulas de “hop” e “bop” de um “corvo pequenino”, enquanto Michael disparava a trinar, “tweet, tweet, tweet”.

O personagem-título do segundo LP, Ben (1972), era um ratinho abandonado (e negro, também, como exibia a capa deletada em reedições posteriores), cujo único amigo era o intérprete-narrador. “Você sente que não é bem-vindo em lugar nenhum”, lamentava o pré-adolescente de cabelo black power que apenas iniciava a escalada épica para ser adorado, desejado e idolatrado pelas multidões.

Em 1973, lançou Music & Me , entre funks chamados “Johnny Raven” (“eu sou Joãozinho Corvo”) e “Euphoria”. O narrador dessa última é um garoto que “vê o arco-íris brilhar” e “repousa numa cama de flores”, “sem conhecer doenças” e “sem tomar pílulas”. Podia parecer euforia (era?), e Michael não escrevia suas próprias canções naquela época, mas o recado era pesado para um garoto de 14 anos.

Michael estava a duas semanas de completar 21 anos em agosto de 1979, quando lançou o esboço emancipatório Off the Wall , recheado de proposições eufóricas como “não pare até conseguir o suficiente”, em “Don’t Stop ’Til You Get Enough”. Algumas letras do disco pareciam falar mais de um operário na meia idade que de um vigoroso pós-adolescente. Em “Workin’ Day and Night”, escrita por Michael em pessoa, o narrador trabalhava “do nascer do sol à meia-noite”, sentia dor nas costas e ao final exclamava, como quem não quer nada: “Estou tão cansado”.

Em “Off the Wall” (composta por Rod Temperton), gritos fantasmagóricos anunciavam a chegada do monstro pop que carregava “o mundo nas costas”, mas preconizava uma vida devotada à música e à diversão: “Somos os ‘party people’ noite e dia/ o único jeito é viver malucos”. Uma frase solta era ouro para bons entendedores: “A vida não é tão ruim assim”.

A emancipação de fato viria três anos depois, com Thriller (1982), que viraria de ponta-cabeça não só a vida do artista, mas toda a história do pop e da indústria musical. A importância crucial do disco reside no fato de Michael ter encontrado ali a pedra filosofal da fusão entre o funk-soul negro e o rock’n’roll branco,

Obra-prima máxima do funk de terror, Thriller é um desabafo emancipador de Michael Jackson

Thriller condecorou a humanidade por sua própria “viralatice”, mas para Michael era a materialização dos pesadelos mais íntimos. O desabafo, esse sim emancipador, permeia cada linha da faixa-título, obra-prima máxima do funk de terror, do rock de arrepio, do pop de lobisomem: “você está paralisado”, “há demônios por todo lado”, “ninguém vai salvá-lo da besta à espreita”, “este é o final da sua vida”. Seria Joe Jackson um dos nomes da besta? “Se você não pode alimentar um bebê, não tenha um bebê”, diz um verso de “Wanna Be Startin’ Somethin’”, parente próximo do drama de (não-)paternidade de “Billy Jean” (“o garoto não é meu filho”).

Se em Thriller Michael queria estar começando alguma coisa, o resto de sua vida seria gasto na busca obsessiva da autossuperação. Em 1987 ele tomaria para si o rótulo de Bad . “Sua fala é ordinária/ você não é um homem/ você atira pedras para esconder suas mãos”, dizia o autor-narrador da faixa-título, como de hábito usando “você” em vez de “eu”. “Man in the Mirror” (composta por Glen Ballard e Siedah Garrett) continha o maior conselho para a humanidade: “Se você quer fazer do mundo um lugar melhor/ dê uma olhada em si mesmo e comece aí a mudança”.

Michael não conseguiu superar Thriller ou a si próprio nos discos da década de 90, mas eles guardam vários dos mais belos, pungentes e dramáticos depoimentos de dor e desespero da história da música. Primeiro, veio Dangerous (1991), quando o autor já se sentia “perigoso”. “Confusões contradizem a identidade/ sabemos distinguir o certo do errado?”, pergunta “Jam”.

“Parem de me pressionar”, “parem de me foder”, começava “Scream”, em duo com a irmã Janet Jackson. Lançada dois anos após as primeiras acusações, na coletânea HIStory (1995) foi compreendida como um esforço de autoafirmação. “Aqui abandonado em minha fama/ armageddon da mente”, declarava-se em “Stranger in Moscow”. “Você viu minha infância?/ estou procurando pelo mundo do qual eu vim”, “é minha sina compensar a infância que nunca tive”, confessava em “Childhood”.

Dois momentos eram especialmente eloquentes em HIStory . Um era “Tabloid Junkie”, em que Michael direcionava sua ira e revolta contra a mídia sensacionalista refestelada em popularidade e dinheiro à custa de seus apuros. “Especulem para ferir quem vocês odeiam/ circulem a mentira que confiscam/ assassinem e mutilem”, cuspia na cara da “mídia canina histérica”. “Só porque você lê numa revista ou vê numa tela de TV não significa que seja real, factual”, tentava ensinar, anotando que “comprar é alimentar”. “Mas todo mundo quer acreditar em tudo”, acabava por desabafar, espalhando seu próprio desabafo.

O outro instante em que o Rei do pop estava nu em HIStory era a valsa “Little Susie”, sobre uma garotinha abusada, espancada e assassinada por um monstro não nomeado (poderia ser Joe Jackson?). “Todo mundo veio ver a menina que agora está morta”, “ela sabia que ninguém se importava”, “abandono pode matar como uma faca”, gemiam versos que pareciam a consumação dos pesadelos inconsequentes de Thriller .

Em 1997, o álbum de remixes Blood on the Dance Floor trazia algumas poucas faixas inéditas, quase todas referentes a fantasmas, gente assustada, sangue na pista de dança. Musicalmente pálido, dizia tudo sobre seu estado de espírito. “Morphine”, por exemplo, era um drama funkeado de dor e anestesia: “um ataque cardíaco, baby/ preciso do seu corpo”, “outra droga, baby/ você deseja tanto”, “confie em mim/ você está tomando morfina”, “você odeia sua raça, baby/ você é só um mentiroso”. “Demerol/ Demerol/ oh, Deus, ele está tomando Demerol”, cantava o funk hospitalar, em referência ao medicamento analgésico e sedativo que em 2009 seria apontado como o causador de sua morte.

Michael Jackson se despediu como o protagonista de uma das mais prolongadas histórias de agonia pública.

“Ghosts” falava sobre “um demônio embaixo da cama” e confrontava mais um sujeito oculto (ou a vários): “Quem lhe deu o direito de mexer com minha família/ de assustar minha família/ de machucar minha família?”.

“It’s Scary” abria o jogo mais do que nunca. “Estou divertindo ou apenas confundindo você?/ sou a besta que você vê e quer ver?/ excentricidades/ serei grotesco para seus olhos”, começava. “Você veio a mim para ver suas fantasias encenadas diante de seus olhos?/ se veio para ver a verdade e a pureza/ aqui está um coração solitário/ deixe a performance começar”, anunciava a tormenta. “Fico assustado no seu lugar?/ estou cansado de ser abusado/ você sabe que me assusta também/ vejo que o demônio é você/ é assustador para você, baby?”, vomitava, desta vez falando a um “você” que poderia ser ele mesmo, o pai, eu ou você.

No subestimado Invincible (2001), o mesmo tema seria reelaborado na ressentida faixa-testamento “Threatened”, “ameaçado”: “Eu sou o seu pior pesadelo”, “vou desaparecer, e então voltarei para assombrar você”.

Essa era a voz que poucos de nós ainda queríamos ouvir. O pacto ilusionista estava se quebrando, Michael estava indo além dos limites tradicionalmente permitidos. A pergunta deixada no ar, desde muito antes de sua morte, era se tínhamos gostado tanto dele só porque era um gênio, ou também porque nos confortava secretamente vê-lo se destroçando diante de nossos olhos e ouvidos e fígados. Ora, se o cara mais famoso do planeta era mais desgraçado do que nós…

Este artigo sobre Michael Jackson foi escrito no primeiro aniversário de sua morte pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches para o portal do iG,

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