“Erra comigo uma vez, a culpa é sua. Erra duas, a culpa é minha por ter acreditado de novo.” A frase não é nossa, mas bem poderia ser. E é com ela que queremos abrir esta reflexão sobre um padrão recorrente, incômodo e esclarecedor: a reutilização simbólica de Michael Jackson como o bode expiatório mais conveniente da cultura pop.
De 2003 a 2025, uma estranha regularidade se impõe: sempre que escândalos reais ameaçam corroer a imagem da indústria do entretenimento, o nome do Rei do Pop retorna às manchetes. Não com fatos novos, mas com documentários reeditados, listas de nomes fora de contexto ou menções desconectadas da realidade judicial. Morto desde 2009, Jackson continua a servir de para-raios para o raio que deveria cair sobre estruturas ainda ativas, ainda protegidas, ainda perigosas.
A teoria não é nova, mas merece ser repetida (não como farsa, diga-se). René Girard, estudioso da violência e da cultura, nos ensinou que toda comunidade em crise busca um culpado coletivo. Alguém que possa ser sacrificado para restaurar a ordem. O bode expiatório é, por definição, inocente ou, ao menos, insuficiente para justificar sozinho o caos que se quer resolver. Sua culpa simbólica é mais importante que qualquer prova. O que importa é sua utilidade para o consenso.
Michael Jackson se encaixa perfeitamente nesse papel. Não apenas porque foi acusado e absolvido, mas porque sua imagem já foi desconstruída ao ponto de se tornar pasto fácil para o moralismo reciclado. Seu rosto pós-cirúrgico, sua voz infantilizada, seus gestos excêntricos — tudo isso o transformou em um personagem tão ambíguo quanto manipulável. É mais fácil apontar para ele do que para os Bryan Singers, os Dan Schneiders, os executivos da Nickelodeon e da Disney que continuam operando na penumbra.
E é aqui que Foucault entra na conversa. Porque não estamos falando apenas de um bode expiatório, mas de um dispositivo de controle. A distração midiática, como parte da engrenagem do poder, serve não apenas para informar, mas para organizar o campo do visível e do dizível. Fala-se de MJ com tanta veemência para não se falar de quem importa agora. E, quando se fala de Michael, raramente se fala do homem que foi absolvido por um júri, cujos acusadores falharam em demonstrar consistência, cujos arquivos do FBI não confirmam qualquer envolvimento em crimes sexuais.
Durante o #MeToo, vimos uma dinâmica poderosa: uma acusação levava a outras. Era como se o silêncio de anos encontrasse, enfim, uma fresta de confiança. Mas, no caso de MJ, esse efeito não se repetiu. Não surgiram ondas de testemunhos espontâneos — exceto por interesses financeiros diretos. Aqui Nietzsche ecoa com força: “tudo retorna, mas como farsa”. A repetição não traz renovação, apenas encenação de um ressentimento sem substância.
Hoje, contudo, a situação que enfrentamos com o caso de Felca mostra que a verdade pode romper esse ciclo. Sua denúncia sobre a “adultização” de menores nas redes sociais viralizou — foram milhões de visualizações, mobilização popular e 70 senadores apresentando pedido de CPI para investigar a exploração infantil digital. É um lembrete de que, ao contrário de um cadáver simbólico, o discurso cheio de vida pode acionar transformações reais.
E o ressentimento, como sabemos, é o alicerce da moralidade covarde — a moralidade que prefere punir mortos a confrontar vivos, que prefere o conforto da simbologia a encarar os sistemas que perpetuam abusos.
Oprah Winfrey, nesse jogo, é personagem ambígua. Já foi “aliada”, depois inquisidora. Talvez creia que cumpra um papel positivo ao dar voz a supostos “sobreviventes”. Mas a seleção dos alvos não é neutra. O foco em MJ, em vez dos que ainda têm poder institucional, é, no mínimo, revelador. Muitos, aliás, apontaram com perplexidade que Oprah nunca tenha dedicado um especial a vítimas de Harvey Weinstein, apesar de sua proximidade com figuras centrais da indústria. Essa seletividade reforça a percepção de que MJ serve como escudo simbólico — o nome seguro de se atacar — enquanto os vivos e operantes seguem à sombra da impunidade.
Será que estamos prontos para deixar Michael Jackson descansar — não no sentido de silenciá-lo, mas de parar de evocá-lo apenas como vilão conveniente? Ou ele continuará sendo o morto útil, aquele que reaparece sempre que é mais fácil mirar no passado do que enfrentar o presente?
Mais do que responder, talvez nos caiba suspeitar: quem se beneficia quando o foco desvia? E o que estamos evitando ver, sempre que voltamos ao mesmo rosto pós-morte, em busca de algum conforto indignado?




