"Cry": entre correntes humanas e rupturas invisíveis | MJ Beats
Singles de "Cry" (Promo e Europeu)

“Cry”: entre correntes humanas e rupturas invisíveis

Há músicas que chegam como golaço no ângulo — inesperado, certeiro — e há músicas que aparecem como aquele chute mascado, estranho, que só ganha sentido no replay. Cry, lançada em 2001, pertence a essa segunda categoria. É o tipo de canção que parece simples à primeira vista, mas que revela camadas profundas quando a gente olha com atenção — especialmente quando lembramos que foi lançada num mundo ferido pelo 11 de Setembro, num período em que Michael Jackson, sempre afeito a símbolos de cura, preferiu a vulnerabilidade ao heroísmo.

20011203_cry_cover "Cry": entre correntes humanas e rupturas invisíveis
Capa do single “Cry” de Michael Jackson

Se Man in the Mirror era o discurso de capitão motivando o time, Cry é o pedido de socorro de quem sabe que não dribla mais a vida sozinho. “I can’t do it by myself” não soa como fraqueza: soa como honestidade, um recurso raro na cultura pop — e raríssimo na indústria musical daquele começo dos anos 2000.

Nos bastidores, porém, havia um outro drama acontecendo: a guerra silenciosa — depois nem tão silenciosa assim — entre Michael e a Sony. O relacionamento já estava tão desgastado que lembrava briga de escuderia em temporada tensa de Fórmula 1. Era como ver um piloto genial tentando correr com um carro que a própria equipe insiste em sabotar por falta de alinhamento interno. E Cry foi vítima direta disso: o single não teve lançamento físico nos Estados Unidos, o que o condenou a ocupar apenas o modestíssimo #1 no Bubbling Under R&B/Hip-Hop — equivalente a marcar um gol anulado por impedimento inexistente.

Na Europa, porém, o cenário foi diferente — como aquele time que sofre em casa, mas vira gigante quando pisa na Bombonera. O single chegou forte e trouxe consigo duas joias: Shout e Streetwalker. Esses B-sides funcionam como relíquias para colecionadores, quase como fitas de testes aerodinâmicos secretos da Ferrari dos anos 90. Sem eles, talvez Cry se perdesse na multidão das baladas humanitárias. Com eles, tornou-se documento.

E então chegamos ao clipe — e aqui, confesso, minha alma futebolística-filosófica-automobilística vibra.
Porque é um clipe feito de ausência.
Michael simplesmente não aparece.
Recusou-se a oferecer novas imagens à gravadora que, segundo ele, sabotava o próprio projeto. É uma decisão que lembra jogador em litígio com diretoria, recusando-se a participar de coletiva — ou piloto que, em protesto, não entrega dados de telemetria. Às vezes, a única forma de dizer algo é não dizer nada.

No vídeo, vemos longas correntes humanas atravessando paisagens diversas. E aqui está o detalhe brilhante: essa imagem remete imediatamente ao evento Hands Across America, de 1986, aquele em que milhões de pessoas deram as mãos para atravessar o país num gesto simbólico contra a pobreza. Michael não apenas conhecia esse gesto: ele foi um dos grandes apoiadores. A corrente humana, portanto, é parte do seu vocabulário visual — um símbolo que ele mesmo ajudou a consagrar.

Agora, em 2001, o símbolo retorna — mas sem ele.
O espírito permanece; o sujeito se retira.
É Hegel, é futebol, é vida real: quando o indivíduo sai, a cultura fica para contar a história.

Há ainda o fantasma da data 5 de dezembro, que repete episódios marcantes da vida de Michael como quem desenha constelações involuntárias. O mundo dele parecia sempre prestes a desabar nesse ponto do calendário — como se a vida tivesse virado um campeonato longo, cheio de rodadas imprevisíveis.

No fim, Cry é mais que um single: é um registro emocional.
É sincera, mas sabotada.
Bela, mas frágil.
Humana, mas esmagada por engrenagens que não souberam acolhê-la.

Michael queria que o mundo desse as mãos — como já havia pedido, literal e simbolicamente, em 1986.
Mas, em 2001, ele era o que mais precisava de alguém segurando a sua.

E nós?
O que fazemos com essa mão hoje?
Porque, às vezes, até os maiores — os “invencíveis” — precisam apenas que alguém diga:
“eu estou aqui.”