Vindication Day 2020: lições do julgamento que ainda vitimiza Michael Jackson

Michael Jackson no primeiro dia de julgamento, em 2003

Hoje, dia 13 de junho de 2020, é o aniversário de 15 anos do chamado ‘Vindication day’, o dia em que Michael Jackson foi inocentado de todas as acusações no julgamento Arvizo, saindo do Tribunal do Condado de Santa Barbara como um homem livre. Por mais de dois anos Jackson tinha tido sua vida devassada, tinha sido zombado e ridicularizado, tinha encarado a possibilidade de ser preso e perder a guarda de seus filhos — mas pelo menos naquele dia, enquanto voltava para a segurança de Neverland, podia respirar com alívio.

Talvez alívio seja uma palavra forte demais. Enquanto Jackson tinha evitado o mal maior e a realidade evidentemente mais dura de ir para a prisão e ser separado de sua família, a alternativa estava longe de ser fácil: o julgamento e os eventos ocorridos antes dele tinham tido um impacto enorme na sua saúde mental e nas suas finanças, e o estigma decorrente dele o perseguiria pelo resto de sua vida.

Sobrevivência parece mais adequado, porque uma condenação seria a morte de Jackson, porque uma parte dele morreu naquele processo extenuante e nunca foi totalmente recuperada, porque a injustiça — essa sensação opressora que vinha de ser falsamente acusado de novo, de ser perseguido e silenciado — era como uma morte simbólica contínua, que lançava uma sombra sobre sua felicidade e seu bem-estar.

Jackson tinha sobrevivido, mas o enorme esforço psicológico necessário para suportar aqueles tempos turbulentos o deixaram traumatizado. Afinal, ele tinha sido submetido a um abuso institucional incansável pelas mãos de um Procurador Distrital vingativo (cujo único objetivo desde o início dos anos 1990 era prendê-lo e humilhá-lo) e tinha sofrido, como diria Joe Vogel, um intenso abuso cultural. Ele foi desumanizado e ridicularizado, julgado e condenado antes mesmo que o processo penal começasse.

Quando Jackson e seus filhos voltaram para os EUA de uma temporada fora após o julgamento, ele estava ansioso para voltar para sua vida e seu trabalho, mas tinha medo do que imaginava ser uma enorme rejeição pelo público. O Rei do Pop, o homem cujos imensos talentos e clássicos atemporais deixaram uma marca cultural na vida de milhões de pessoas ao redor do mundo, tinha certeza que agora era unanimemente odiado.

É muito provável que, naquela altura, Jackson quisesse paz acima de tudo. Mas será que é possível ter-se uma paz verdadeira e duradoura se não há justiça?

A justiça foi feita, pelo menos no sentido legal, naquele 13 de junho. Jackson foi completamente inocentado, a vingança do Procurador Distrital Tom Sneddon contra ele falhou novamente e Janet Arvizo, a mãe do acusador, acabou sendo condenada por fraude previdenciária depois do julgamento. No entanto, a justiça simbólica para o acusado, a pessoa que esteve à beira de perder tudo, nunca foi obtida.

“A história é escrita pelos vencedores” é uma citação que resume perfeitamente os desdobramentos do julgamento de Michael Jackson de 2005. Ela se refere ao processo através do qual o ‘lado vencedor’ silencia o ‘lado perdedor’, criando uma narrativa sobre eventos ocorridos no passado que se encaixa na sua visão de mundo, que propositadamente realça certos fatos, aspectos e personagens em detrimento de outros.

Essas narrativas hegemônicas, que são encontradas desde os livros de história que lemos na escola até a forma em que as notícias são transmitidas na TV, ‘moldam’ nossa cultura e informam ao público como ele deve se sentir em relação ao tema em questão. Portanto, ao controlar as narrativas, os ‘vencedores’, de certa forma, controlam a realidade. E que fique claro: mesmo inocentado, Michael Jackson não saiu daquele tribunal como o vencedor.

Num artigo recente, falamos da narrativa negativa sobre Jackson que foi criada e disseminada pela mídia a partir de meados dos anos 1980 — como começou com a devassa e o escárnio de sua vida pessoal e de seus traços de personalidade (reais ou inventados), e como a partir do início dos anos 1990 o foco mudou para uma coisa muito mais séria: as alegações de pedofilia. Essas alegações, que careciam de provas e de credibilidade, se tornaram o caminho escolhido para quem queria lucrar em cima do nome de Jackson.

Apesar dos veredictos de ‘inocente’, o julgamento Arvizo não levou à esperada ruptura dessa narrativa — pelo contrário, apenas a reforçou. Nesse período, jornalistas, apresentadores de TV e ‘especialistas’ tentaram ativamente influenciar o resultado dos eventos relatando as acusações bizarras contra Jackson como fato, usando fontes questionáveis para criar novas histórias e julgando duramente sua aparência e suas ações, revelando seu desprezo e seu preconceito.

A cultura de massa rapidamente seguiu esses passos, com canais de entretenimento, programas de comédia e filmes daquela época aderindo ao linchamento público de Jackson e ajudando a espalhar uma imagem desumanizante dele como uma figura sem alma, uma aberração, um palhaço, criando um campo minado de referências negativas praticamente inescapáveis para o espectador comum, que frequentemente não se importa o suficiente para pesquisar os fatos.

A absolvição completa de Jackson foi, como se pode imaginar, uma grande decepção para a mídia. Os mesmos repórteres que, nas palavras do advogado de defesa, Tom Mesereau, “’quase salivavam com [Jackson] ser levado para a cadeia”, ficaram envergonhados após o veredicto. Ele era, afinal, uma contradição escancarada de suas histórias, um golpe duro na credibilidade dos advogados, especialistas de comportamento e jornalistas ‘sabe-tudo’, que tinham apostado suas carreiras em uma condenação.

Após o julgamento, a maioria deles simplesmente evaporou, sem ao menos se retratar (quanto mais pedir merecidas desculpas). Os veredictos de ‘inocente’, ao que parece, não eram tão dignos de notícia quanto as histórias maliciosas. Mas para outros, como Diane Dimond, do canal Court TV, cuja obsessão com Jackson fez com que Lola Ogunnaike do New York Times dissesse que seu túmulo traria escrito “Aqui jaz Diane ‘você-sabe,-aquela-que-cobriu-Michael-Jackson’ Dimond”, deixar o caso para trás não seria tão simples.

Para que a narrativa hegemônica de “Michael Jackson, o molestador de crianças” continuasse viva mesmo após sua absolvição, agentes da mídia como Dimond tiveram que investir na continuidade de suas histórias. Isso significou caracterizar Jackson como ‘privilegiado’ e ‘intocável’, alguém que agora poderia “viver sua vida com uma carta branca e fazer o que quiser com pessoas de qualquer idade.” A colega de Dimond no Court TV, Nancy Grace, que tinha sido explícita sobre sua crença na condenação, similarmente afirmou que Jackson foi “inocentado por motivo de celebridade.”

A desqualificação de personagens centrais no julgamento foi outra tática usada para invalidar simbolicamente o veredicto. O questionamento da capacidade dos jurados de cumprir seu papel beirou o assédio, com Wendy Murphy no canal Fox News chegando ao ponto de dizer que eles precisavam de testes de QI. Janet Arvizo foi outro alvo muito popular, sua performance bizarra na tribuna levando Nancy Grace a chamá-la de o “único elo fraco” no caso da Promotoria.

Os críticos de Jackson pareciam desconectados da realidade. Talvez fosse porque eles só tinham permanecido no tribunal para ouvir as alegações, ignorando os interrogatórios, que as derrubavam. Talvez tivessem perdido o fato de que o júri tinha sido exposto a uma miríade de testemunhas da Promotoria que cometiam perjúrio ou se contradiziam umas às outras, com o depoimento desastroso de Janet sendo apenas o último prego no caixão de um caso que foi completamente destruído pela Defesa.

De qualquer forma, essas análises desonestas sobre Jackson e o veredicto permaneceram amplamente incontestadas, com uma grande parcela do público ainda considerando-o culpado e os poucos que tiveram a coragem de se colocar contra a contínua perseguição aparentando estar gritando no vazio. A velha narrativa prevaleceu. O julgamento não trouxe a esperada revisão do abuso cultural e institucional sofrido por Jackson. Esses tempos difíceis mostraram quem eram seus verdadeiros amigos, talvez ainda mais que em 1993.

Mas nem tudo era ruim. Jackson era forte (ou, como costumava dizer, tinha ‘pele de rinoceronte’) — ele tinha sobrevivido, até evoluído, e logo descobriria, através da participação em eventos como o World Music Awards de 2006, de projetos como o álbum Bad 25 e de reportagens de capa nas revistas Ebony e Vogue L’Uomo que o público não apenas não o rejeitava, como tinha o interesse renovado nele e na sua música. Cada tentativa organizada de acabar com a sua carreira e com a sua reputação parecia, inversamente, provar cada vez mais a relevância de seu trabalho e o poder de sua mensagem.

A morte trágica de Jackson, apenas quatro anos depois do julgamento Arvizo, o roubou, entre outras coisas, do seu direito à justiça simbólica por tudo o que suportou durante a vida. No entanto, a luta por justiça não terminou com a sua morte — não apenas porque nunca houve um debate cultural sério sobre o mal a ele infligido, mas porque o trauma e o estigma passaram para os seus entes queridos, em especial seus filhos, que até hoje são assediados e maltratados pelos mesmos agentes que vitimizaram seu pai.

A maior lição a ser tirada dos 15 anos da absolvição de Jackson é que apenas por meio do reconhecimento — a admissão pública, pelos agentes responsáveis, de todos os males feitos a ele e seus entes queridos por alegações falsas, mentiras, difamação e extorsão — é que a justiça simbólica poderá ocorrer. Somente quando os abusadores de Jackson forem responsabilizados por suas ações e finalmente entenderem que ele não é um saco de pancadas nem um caixa eletrônico, e sim um ser humano, é que a narrativa negativa sobre ele será rompida e a paz que ele tanto desejou finalmente será alcançada.

por Manu Bezamat

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