Em 1984, Carlos Drummond de Andrade escreveu um texto dedicado especialmente a Michael Jackson. Leia:
“Para Presidente da República, Michael Jackson!
Ainda não ouvi este brado, mas daqui a pouco ele soará. Nas areias do Leblon e nas noites do Asa Branca. Na feira de São Cristóvão. Nas tertúlias do Jockey Club. No Maracanã. Na Cobal. No Lar das Donzelas Incasáveis. Embaixo dos viadutos e passarelas. No bote dos pescadores. No céu estrelado.
Michael Jackson, por que custou tanto a aparecer, Michael Jackson? Os deuses desapareceram há milênios, o grande Pã morreu ninguém se lembra mais quando. As religiões, sentindo-se solitárias, abraçaram-se ecumenicamente, porém nenhuma apresentou um fato novo, de importância cósmica.
Foi preciso que um útero… Não. Michael Jackson, o divino, nasceu da barriga de um meteoro ou da pura luz ou das entranhas do Fatum. Tinha que nascer diferente, para crescer diferente e seduzir diferente a humanidade.
Surgem apelos veementes para Michael Jackson fazer isto e aquilo, pagar nossos credores estrangeiros, ressuscitar o PDS, garantir a safra da soja. Só Michael Jackson poderá acabar com a fome no Brasil e com a saúva também.
Se Michael Jackson não pacificar os casais desavindos, quem mais o fará? Seu pansexualismo é proposta de vida para a humanidade fatigada disto e daquilo, em fatias tediosas; é ou tudo ou nada. Jackson explode. Michael levita. E nós com ele.
O disco de MJ substitui plenamente as Epístolas de São Pedro, São Paulo e São Tiago, e até a novela das 8. Colossenses, Tessalonicenses, Coríntios (e corintianos também), detende-vos e escutai a Voz que vem de Michael. A voz e os gestos. Escutai os gestos, as lantejoulas pretas, a cabeleira incendiada no comercial de tevê, escutai o lobisomem em que ele se transformou.
Epa, Michael, mas você abusa da nossa capacidade de admirar. Você, como a gasolina, excede; super excede a gasolina. As revistas brasileiras que buscam o sensacional só têm uma capa: você. Nem Roberta Close nem Reagan nem Maluf podem contigo. Estás em toda parte.
Ouvi dizer que as novas notas de cem mil cruzeiros, em fabricação na Casa da Moeda, terão a efígie cantando Beat It. É uma jogada inteligente para recuperar a confiança no valor das cédulas.Com algumas MJ-100 mil na bolsa, as madames poderão ir confiantes ao supermercado, para a compra de abobrinha e sabão branco-total.
Porque Michael, como já se proclamou, é o astro total. Tótem. Totipotente. Como ele engasga bem! Até engasgar é uma arte, e Michael a domina como a um potro selvagem. O wet look dele é de endoidar qualquer Clodovil.
As crianças do mundo inteiro o adoram como a um meninão batmânico e frágil. O Senador Amaral Peixoto acha que ele pode salvar o Brasil, se de todo o Presidente Figueiredo não quiser incumbir-se dessa chateação.
O Deputado Ulysses Guimarães não faz restrições ao garoto que integra os Jackson Five — e isto é dizer o máximo. Em sua dança, Dalal Achcar não bota defeito. Dizem que o Athayde, da Academia Brasileira de Letras, o julga merecedor de uma poltrona imortal, mesmo sem vaga, principalmente sem: é mais glorificador.
Michael Jackson quanto custa para o bolso do Brasil? Em discos, cassetes, videocassetes, bugigangas que trazem o nome ou a figura dele? Pergunta evidentemente estúpida, que só formulo aqui para frisar como um acontecimento cultural de tamanha grandeza pode inspirar mesquinhas indagações contábeis.
O que gastamos para consumir Michael Jackson, e não Nijinski ou a Malibran, notoriamente falecidos, é nada em comparação como o gozo sensorial-espiritual que ele nos proporciona. E ele, por sua vez, não nos deve nada.
Em face da carência nacional de ídolos, natural que importemos um, mais um. Não poderíamos estabelecer reserva de mercado para os imitadores nacionais desse elfo cantarino. Queremos o original, o único, o sem-limite, o tal-total.
O Velô, o Mílton, o Chico, o Tom, a Ramalho, o Matogrosso, o este e o aquele que se cuidem, se quiserem que continuemos a amá-los e frequentá-los. Michael não vem com espada de fogo para trucidá-los, mas, se não andarem direitinho, o bicho vem e o bicho pega.
O espaço ocupado por ele abrange o nosso universo, e para haver convivência pacífica é necessário que todos reconheçamos a originalidade, a supra=genialidade de Jackson, com ou sem família, que isso de família para ele são babados ou papelotes.
A família Jackson é um adjetivo, Michael não é só o substantivo, é o dicionário; a enciclopédia, a tradição cantada e pulada, do homem das cavernas até o homem das estrelas.
Palmas para Michael Jackson. Ele merece. Tanta gente por aí que não merece, ganhando, mais do que aplausos: posições, mordomias, o mel da vida.
O americano tem tudo isso e nos tem também a seus pés, como é devido. Inclino-me e declaro, altissonante: que seria o mundo se não existisse Michael Jackson e seu show Victory? Saravá, Mic!”
por Carlos Drummond de Andrade, poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX