Reflexões sobre fake news — o caso de Michael Jackson

Michael Jackson lendo jornal nos anos 80

Histórias falsas têm dominado o discurso público sobre Jackson há décadas, mas agora podemos reagir


As fake news são um dos maiores fenômenos sociais dos séculos XX e XXI. A criação de narrativas com pouco embasamento em fatos (quando não inteiramente alheias a eles) tem sido usada para muitos propósitos sociais e políticos, propagando desinformação e ajudando a deseducar o público.

Michael Jackson é provavelmente o alvo mais famoso de fake news no cenário cultural de nossos tempos. Seu tratamento deplorável pela mídia começou nos tabloides, mas rapidamente alcançou os veículos midiáticos de maior reputação, que, especialmente em seu caso, parecem abrir mão da verificação de suas fontes.

As fake news estão na essência das alegações contra Jackson. Na falta de provas, a mídia cria histórias falsas com o objetivo de costurar uma narrativa aparentemente linear e coerente, que o coloca como um vilão e uma aberração. Descontextualização, confusão e repetição são as estratégias centrais.

Ao extrair Jackson completamente do contexto sociocultural de seu tempo e omitir a história pessoal, as emoções e as motivações que o levaram a agir desta maneira, ao invés daquela, as fake news o isolaram e o desumanizaram, transformando um indivíduo complexo num objeto sem vida, abrindo as portas para o julgamento e o escárnio do público.

Não é à toa que informações confusas (e muitas vezes contraditórias) são divulgadas por alguns meios de comunicação. O foco não é na qualidade das notícias, e sim na quantidade, como se estivessem lançando um monte de histórias na direção do público e vendo quais colam. E quanto mais bizarras forem essas histórias, melhor — pelo menos no caso de Jackson.

Algumas notícias sobre Jackson que vêm circulando na mídia desde os anos 1980 são tão surreais e inacreditáveis que qualquer coisa que se assemelhe minimamente a um cenário plausível é então encarada como verdade, mesmo que tenha sido inventada. Mesmo se uma notícia falsa não é inteiramente absorvida pelo público, ainda serve ao seu propósito, porque ajuda a criar uma aura de bizarrice e negatividade que torna a próxima mentira mais aceitável.

A cacofonia de informações confunde o público, que fica tão transtornado que, ao invés de buscar fontes confiáveis, se conforma com a conclusão de que se vários meios de comunicação estão relatando as mesmas histórias de forma mais ou menos igual, então deve haver pelo menos um pouco de verdade nelas — resumindo, acreditam no ditado “onde há fumaça, há fogo”. Mas e se, ao invés de fogo de verdade, esse tempo todo havia alguém maliciosamente soprando fumaça?

O público geral parece apoiar sua “confiança inabalável” na mídia na ilusão de que o jornalismo e os meios de comunicação existem meramente para relatar a verdade dos fatos, de forma neutra. Jornalistas deveriam relatar a verdade sobre os fatos da forma mais neutra possível. Se todos realmente fazem isso, aí é outra história.

Essa não é uma crítica dirigida a todos os jornalistas. Alguns dos maiores escritores, pensadores e ativistas da história eram/são jornalistas. Mas também existe aquele tipo de jornalista que se preocupa com o furo acima de tudo e de todos, que encara uma história sobre um ser humano passando por dificuldades apenas como uma maneira de subir mais um degrau na escala social, deixando um rastro de destruição por onde passam.

Some-se a isso a pressão a que os jornalistas no geral são submetidos em seus ambientes de trabalho para que se ajustem às agendas de seus empregadores, e as dificuldades financeiras pelas quais os meios de comunicação têm passado ao tentar sobreviver em indústrias em declínio, e o resultado é uma combinação explosiva, que inevitavelmente deixa vítimas pelo caminho.

Se estão fazendo isso para se destacar de seus colegas, para ganhar visibilidade ou porque todo mundo está fazendo, não importa — o fato é que, no caso de Michael Jackson, as fake news se estabeleceram como a principal narrativa sobre ele porque esses indivíduos e corporações têm repetido continuamente as mesmas falácias no decorrer dos anos.

Não faz diferença se uma história falsa, contada por um ex-funcionário descontente de Jackson que recebeu uma boa soma para aumentar suas memórias, é impressa de propósito na capa de um tabloide, ou se essa mesma “notícia” chegou à coluna de um jornal de boa reputação por uma simples falta de checagem dos fatos. O efeito é o mesmo.

Depois de mais de trinta anos de danos à sua reputação, a imagem negativa associada a Jackson é tão sólida que qualquer absurdo dito sobre ele é tomado como verdade por uma grande parcela da população. O chamado viés de confirmação, a tendência de apenas se buscar e/ou processar informações que se adequam às suas crenças pré-existentes, explica o comportamento da maior parte daqueles que acreditam ferrenhamente que Jackson é culpado — essas pessoas só estão dispostas a tomar como verdadeiras histórias que confirmam seu ponto de vista prévio sobre o cantor.

Para tornar as coisas ainda mais difíceis, as principais narrativas públicas sobre Jackson — que ele era um homem que odiava a si mesmo e às suas raízes; que ele mantinha relações ilegais e imorais com crianças — são extremamente simples e de fácil apreensão, enquanto a verdade… Bem, a verdade é muito mais complexa, porque ouvi-la requer muita empatia. Porque chegar à conclusão de que cada indivíduo é um produto de sua própria história pessoal, de seu tempo e sua cultura, e que suas ações precisam ser analisadas em seu contexto, requer inteligência. Ser intolerante não requer nada.

E, sejamos francos. Nesses tempos hiper individualistas de Netflix-and-chill, ninguém quer pensar. Ninguém quer se colocar no lugar do outro. Na melhor das hipóteses, as pessoas se importam o suficiente sobre um tema apenas ao ponto de retuitar um artigo pequeno ou de curtir um post no Facebook. Na pior, o sofrimento humano extremo vira um meme engraçado que algum idiota compartilha nas redes sociais, torcendo para que viralize.

Mas nem tudo está perdido. Se é verdade que o advento da internet impulsionou a indústria das fake news, ele também deu às pessoas comuns uma ferramenta valiosa para reagir contra narrativas simplistas e unilaterais. E nós não vamos desistir tão cedo.

por Manu Bezamat

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